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VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO COMUM (06.09.15)

Mc 7, 31-37 “Jesus faz bem todas as coisas”

Os eventos relatados no texto de hoje situam-se no território pagão de Tiro e Sidônia (hoje, Líbano). Marcos faz questão de sublinhar o contexto geográfico - talvez para enfatizar a missão aos gentios (pagãos) que marcava a sua Igreja. Mais uma vez estamos diante de um milagre de Jesus que manifesta o poder de Deus que age n’Ele, que causa espanto e alegria entre as testemunhas, e que leva Jesus a proibir que a notícia se espalhe no território. Em si, o relato segue o roteiro de tantos outros - uma pessoa sofrida (neste caso sofrendo de surdez e incapaz de falar corretamente), a compaixão da parte de Jesus que o leva a atender o pedido de uma cura, a cura em si, a proibição de espalhar a notícia (o chamado “Segredo Messiânico) e a incapacidade das testemunhas de guardar o segredo.

  A violação da proibição por parte da multidão traz à tona a questão da verdadeira identidade de Jesus, dando a impressão de que Ele é muito mais do que um simples curador! As palavras que expressam o entusiasmo da multidão diante d’Ele (7, 37) são tiradas de uma seção apocalíptica de Isaías, sugerindo que, nas atividades de Jesus, o Reino de Deus se faz presente.

Mais uma vez o Segredo Messiânico em Marcos nos faz perguntar sobe o seu sentido. Provavelmente faz parte da insistência de Marcos de que Jesus é mais do que um taumaturgo ou milagreiro, e que a sua verdadeira identidade só se revelará na sua Cruz e Ressurreição. Pois é somente lá, e não diante dos milagres, que Jesus é proclamado “Filho de Deus” por uma pessoa humana - o oficial que exclamou ao pé da Cruz, vendo como Jesus havia expirado: “De fato, esse homem era mesmo Filho de Deus” (Mc 15, 39). Para Marcos, uma fé baseada nos milagres é sempre ambígua, pois pode levar ao seguimento de Jesus por motivos errôneos, interesseiros e duvidosos. Para corrigir essa tendência na sua comunidade, ele insiste que só se pode proclamar Jesus com o título messiânico “Filho de Deus” ao pé da Cruz, onde não há lugar para dúvidas, pois só se pode crer na fraqueza de Deus, como diria Paulo, que é mais forte do que a força humana (1Cor 1, 25). Um alerta para muitos cristãos hoje!

A proclamação das testemunhas que Jesus “fez os surdos ouvir e os mudos falar” alude a Is 35, 5-6, que faz parte da visão apocalíptica do futuro glorioso de Israel (Is 34-35, relacionado com Is 40-66). O uso aqui deste texto vétero-testamentário indica que o futuro glorioso do novo Israel já está presente no ministério de Jesus.

Podemos ver um sentido mais simbólico para os nossos dias na cura relatada - o de abrir os ouvidos e soltar as línguas. Pois, o sistema hegemônico de hoje, e os meios de comunicação, frequentemente atrelados e coniventes, procuram em geral tapar os ouvidos do povo diante dos gritos dos sofridos; pois, fazem questão de camuflar a realidade sofrida de milhões, escondendo a realidade ou banalizando-a, como fica claro na maioria dos noticiários de televisão. Também as forças dominantes deixam cada vez mais os excluídos sem voz - só pode ter voz ativa quem produz e consome, na nossa sociedade materialista e consumista. Diante da surdez e mudez físicas, Jesus cura! O Evangelho e a atividade evangelizadora das igrejas devem ajudar as pessoas para que ouçam o grito dos oprimidos e para que ajudem a devolver a voz àqueles a quem lhes foi tirada. Dia 7 de setembro é o dia do Grito dos Excluídos - uma maneira de as Igrejas e todas as pessoas de boa vontade assinalarem que a nossa luta está em favor dos excluídos e menos favorecidos, e que essa atividade não se limita a uma passeata neste dia somente, mas que é a tônica da nossa ação evangelizadora, retomada com muita força no Documento de Aparecida e em tantos outros documentos do Magistério e da CNBB, e sempre enfatizada nos pronunciamentos e escritos do Papa Francisco.

            “Jesus fez bem todas as coisas - fez os surdos ouvir e os mudos falar!” Que se possa dizer isso de todas as Igrejas e pastorais - que ajudamos a devolver a capacidade de ouvir os gemidos dos sofredores a tantas pessoas ensurdecidas pela ideologia dominante, e que ajudamos os sem-voz a recuperar a voz ativa, nas decisões das Igrejas e da sociedade em geral.

VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO COMUM (13.09.15)

Mc 8, 27-35

“Se alguém quer me seguir, tome a sua cruz, renuncie a si mesmo e me siga”

Como evangelho de hoje, temos a história do caminho de Cesaréia de Felipe. Embora de grande importância também em Mateus e Lucas, o relato mais original está no evangelho de Marcos, Cap. 8, o qual se torna o pivô de todo o Evangelho.

A pedagogia do relato é interessante. Primeiro, Jesus faz uma pergunta bastante inócua: “quem dizem os homens que eu sou?” Assim, chovem respostas, pois esta pergunta não compromete - é o “diz que...” Mas a segunda pergunta traz a “facada”: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Agora não vêm muitas respostas, pois quem responde em nome pessoal, e não dos outros, se compromete! Somente Pedro se arrisca e proclama a verdade sobre Jesus: “Tu és o Messias”. Aparentemente, Pedro acertou, e realmente, na versão mateana, Jesus confirma a verdade do que proclamou! Afirmou que foi através de uma revelação do Pai que Pedro fez a sua profissão de fé. Mas, para que entendamos bem o trecho, é importante que continuemos a leitura pelo menos até o v. 35, porque o assunto é mais complicado do que possa parecer.

Jesus logo explica o que quer dizer ser o Messias. Não era ser glorioso, triunfante e poderoso, conforme os critérios deste mundo e as expectativas do povo do seu tempo, inclusive os discípulos. Muito pelo contrário, era ser fiel à sua vocação como Servo de Javé, que teria como consequência ser preso, torturado e assassinado, e dar a vida em favor de muitos. Usando o título messiânico “Filho de Homem” - que vem de Daniel 7, 13ss - Jesus confirmou que era o Messias, mas não do jeito que Pedro esperava. Este, conforme as expectativas correntes no seu tempo, esperava um Messias forte e dominador, não um que pudesse ir, e levar os seus seguidores com ele, até a Cruz. Por isso, Pedro contesta Jesus, pedindo que nada disso acontecesse. E como recompensa ganha uma das frases mais duras da Bíblia: “Afasta-se de mim, satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens” (v. 33). Pedro, cuja proclamação de fé parecia ser tão acertada, é agora chamado de Satanás - o Tentador por excelência! Pedro tinha os títulos certos para Jesus, mas a prática errada! Usando os nossos termos de hoje, de uma forma um tanto anacrônica, podemos dizer que ele tinha ortodoxia mas não ortopraxis!

Assim, Jesus usa o equívoco de Pedro para explicar o que significa ser seguidor d’Ele: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me” (v. 34). Ter fé em Jesus não é em primeiro lugar um exercício intelectual ou teológico, mas uma prática, uma adesão à sua pessoa e missão, que leva ao seguimento d’Ele na construção do seu projeto, até às últimas consequências.

Hoje, dois mil anos depois, a pergunta de Jesus ressoa forte - a segunda pergunta. Para nós, quem é Jesus? Não para o catecismo, não para o Papa ou o Bispo, mas para cada um de nós pessoalmente? No fundo a resposta se dá, não com palavras, mas pela maneira em que vivemos e nos comprometemos com o projeto de Jesus - Ele que veio para que todos tivessem a vida e a vida plenamente (Jo 10, 10). Cuidemos para que não caiamos na tentação do equívoco de Pedro, a de termos a doutrina e a teoria certas, mas a prática errada!

VIGÉSIMO QUINTO DOMINGO COMUM (20.09.15)

Mc 9, 30-37

“Se alguém quer ser o primeiro deve ser o último, aquele que serve a todos”

Na estrutura do Marcos, depois da chamada “Crise Galilaica”, manifestada no episódio da Estada de Cesaréia de Felipe, Jesus muda totalmente de tática e estratégia. Ele não anda mais com as multidões, quase não faz mais milagres - dos 19 milagres em Marcos, somente dois acontecem depois do acontecimento de Cesaréia. Em lugar disso, Ele se dedica à formação dos seus discípulos, tentando inculcar neles as atitudes de verdadeiros discípulos, ensinando-os que o caminho d’Ele é o caminho da Cruz, da entrega, da doação, e não da busca do poder, da glória ou da fama. Marcos demonstra isso de uma maneira bem organizada. Em três ocasiões, Jesus anuncia a sua futura paixão (8, 81; 9, 31; 10, 33-34). Em cada ocasião os discípulos não compreendem (8, 32; 8, 34; 10, 35-37), e a partir dessas incompreensões Jesus dá um ensinamento, aprofundando vários aspectos do verdadeiro seguimento d’Ele (8, 34-38; 9, 35-37; 10, 38-45).

O trecho de hoje trata do segundo desses três acontecimentos. A causa da dificuldade é a tentação do poder. Embora Jesus tenha deixado bem claro, pela segunda vez, que o seguimento d’Ele é uma vida de entrega, até à morte, em favor dos outros, os Doze discutem entre si qual deles era a maior! O poder é tentação permanente em todas as comunidades, não isentando as Igrejas! Podemos até dizer, com certa dose de humor, que a busca de poder está no DNA das pessoas humanas! Talvez mais do que outro motivo, a sede do poder tem sido o que mais tem corrompido nas Igrejas - mais ainda do que a imoralidade ou a ganância financeira. No século dezenove o estadista e historiador católico inglês Lord Acton falou que “todo poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente” - e não há poder mais perigoso do que o religioso, exercido em nome de Deus!

Quantos sofrimentos e males são causados por essa sêde do poder, disfarçada como mandato de Deus! Desde o fundamentalismo fanático do Talibã no Afeganistão, até a ufania de certos padres - mormente recém ordenados - que se ostentam com roupas finas e carros do ano e, de uma maneira opressora, dominam religiosas e leigos de muito mais experiência e sabedoria do que eles... a sêde do poder e da dominação, sempre em nome de Deus ou de Jesus, continua a distorcer a vida de muitas comunidades religiosas, dentro e fora do Cristianismo. No fundo é por isso que certos setores da Igreja se colocam frontalmente ou veladamente contra o Papa Francisco. Como escreveu o teólogo dominicano sul-africano Alberto Nolan OP, “Jesus tem sido mais frequentemente honrado e venerado por aquilo que ele não significou, do que por aquilo que ele realmente significou. A suprema ironia é que algumas das coisas, às quais Ele mais fortemente se opôs na sua época, foram ressuscitadas, pregadas e difundidas mais amplamente através do mundo – em seu nome.” O poder-dominação é frequentemente um desses elementos.

Diante da recusa dos seus discípulos em entender o seu ensinamento, Jesus, o Servo de Javé, pega uma criança como símbolo de quem deve segui-Lo. Não porque criança é sempre santa nem inocente! Mas porque é sem-poder, dependente dos adultos em tudo. No tempo de Jesus criança não tinha direitos e era entre os últimos da sociedade. Os seus discípulos são convidados a despojar-se do poder para serem servos, da mesma maneira do que o Mestre, Ele que “não se apegou à sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte da cruz” (Fl 2, 6-8).

O poder em si é um bem - para ser usado a serviço dos outros! Todos nós - clero, religiosos, leigos - somos vulneráveis diante da tentação do poder. Levemos a sério o ensinamento de hoje, pois só pode ser discípulo de Jesus quem procura ser o servo de todos! Evitemos títulos, privilégios, e comportamentos que tão facilmente poderão nos afastar do seguimento do Senhor. Que o nosso modelo seja sempre Ele - e não a sociedade vigente, onde é o poder que manda. A nossa força vem da Cruz de Jesus, a fraqueza do Deus “que escolheu o que o mundo despreza, acha vil e sem valor, para destruir o que o mundo pensa que é importante” (1Cor 1, 28).

VIGÉSIMO SEXTO DOMINGO COMUM (30.09.15)

Mc 9, 38- 43. 45.47- 48  “Quem não está contra nós está a nosso favor”

O texto de hoje nos coloca mais uma vez no contexto do ensinamento de Jesus aos seus discípulos, enquanto caminhavam para Jerusalém. Já vimos que a partir da “crise galilaica”, Jesus mudou a sua estratégia, afastou-se das multidões e dedicou-se à formação mais intensa dos seus discípulos, pois estes se mostravam incapazes de acolher a novidade do Evangelho, com a mudança radical de atitudes que ele implicava.

A primeira atitude a ser corrigida, nos versículos de hoje, é a de querer reservar o Espírito de Jesus como propriedade da comunidade. João se queixa que um homem que não os seguia estava expulsando demônios em nome de Jesus. Atitude mesquinha, de querer dominar o Espírito de Deus, sequestrar o poder divino! Mas, infelizmente, uma atitude bastante prevalecente em certos setores mais retrógrados das Igrejas ainda hoje, que acham que toda a riqueza do mistério de Deus possa caber dentro das margens estreitas das suas definições dogmáticas! Hoje, Jesus nos ensina a verdadeira atitude de um discípulo: “Não lhe proíbam, pois... quem não está contra nós, está a nosso favor” (v. 40). Temos que aprender a acolher as manifestações verdadeiras do Espírito de Deus em todas as religiões e culturas, e estar alertas para que nós mesmos não O escondamos ou deturpemos! Discernimento deve ser uma atitude permanente de vida!

A segunda parte do trecho nos coloca diante do problema do escândalo aos pequenos na comunidade. Aqui cumpre ressaltar que “os pequenos” neste texto não são as crianças, mas os humildes e pobres da comunidade cristã. É bom lembrar o sentido original da palavra “escândalo”. Vem de um termo grego que significa “pedra de tropeço”. Então se trata de uma situação em que os pequenos da comunidade “tropeçam”, isso é, não conseguem manter-se em pé ou se afastam, por causa de certas atitudes dos dirigentes comunitários (é bom notar que o discurso e as advertências se dirigem aos discípulos, e não aos de fora). Deve ter sido um problema comum, pois o Discurso Eclesiológico (isto é, da Igreja) no Evangelho de Mateus trata do mesmo assunto (Mt 18, 6-14). Usa imagens e linguagem tipicamente semitas: Jesus manda cortar e jogar fora “a mão, o pé, e o olho”, que causam escândalos aos pequenos. Obviamente não se propõe aqui uma mutilação física, mesmo se, ao longo da história, houvesse quem assim o entendesse - por exemplo, Orígenes. “Mão” significa a nossa maneira de agir, “pé” o modo de caminhar na vida e “olho” o jeito de ver e julgar as coisas, ou até, a nossa ideologia. Então o texto convida os dirigentes das comunidades cristãs (hoje bispos, padres, pastores, irmãs, ministros etc.) a reverem o seu modo de agir, pensar e julgar, para averiguar se não estão causando a queda dos pequenos e humildes. Se descobrirmos que assim esteja acontecendo, então devemos “cortar e jogar fora” - ou seja, mudar o que causa o problema. Caso contrário, não experimentaremos na comunidade a presença do Reino de Deus - a vivência dos valores do Evangelho, que Jesus deu a vida para estabelecer.

A caminhada para Jerusalém, no Evangelho de Marcos, é um grande ensinamento de Jesus para quem quer segui-Lo como discípulo. Trecho por trecho, ele vai desafiando a mentalidade dos discípulos, tão marcada pelos valores da sociedade vigente, e semeando os valores do Reino. Hoje, Ele nos desafia a praticarmos um verdadeiro ecumenismo e diálogo inter-religioso, e a revermos os nossos modos de agir e pensar, para que a experiência cristã de comunidade seja uma amostra real dos valores do Reino de Deus. O Papa Francisco nos dá o exemplo, enraizado como está no espírito de Jesus e na Palavra. Que tenhamos a abertura e a coragem de praticar o que ele nos ensina.

Pe. Tomaz Hughes SVD

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