Décimo Domingo Comum (07.06.15)

Mc 3, 20-35

“Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.

            Este texto de Marcos nos apresenta uma característica bastante usada neste Evangelho. O autor intercala uma discussão com os escribas (vv. 22-30) em uma cena em que Jesus se defronta com a incompreensão da sua família (vv. 20-21. 31-35). Ele usa o mesmo procedimento em 5, 21-43; 6, 7-33; 11, 11-21 e 14, 1-11. A finalidade é para que o leitor interprete um evento à luz do outro. Assim, no texto de hoje, devemos nos perguntar como é que os versículos que tratam dos familiares de Jesus e o trecho referente à discussão com os escribas lançam uma luz, um sobre o outro. Na verdade, em ambos os casos, Jesus é objeto de acusações falsas e é incompreendido, até rejeitado, pelos seus familiares, bem como pelas autoridades de Jerusalém.

 

            Não há dúvida que a atividade de Jesus causa espanto e choque. Trabalhando até a noite em prol dos excluídos e sofridos, misturando-se com gente considerada impura pela religião oficial, que conseguia implantar esta ideia na mentalidade do povo comum, e criticando fortemente as lideranças religiosas do seu tempo, Jesus parecia para muitos “louco” ou “possuído por um demônio”, ou algo semelhante. Em uma cultura onde “honra” e “vergonha” eram conceitos chaves para qualquer família, os familiares de Jesus resolveram conter o problema, indo ao lugar da sua pregação para “segurá-lo” e trazê-lo para a casa da família, em Nazaré.

            O confronto com a família continua nos vv. 31-35. É interessante como Marcos constrói a cena. Quando os parentes chegam ao local onde ele está ensinando, eles nem tentam entrar para escutá-lo ou para conversar com ele. Eles deliberadamente ficam do lado de fora e mandam chamá-lo. Isso contrasta muito com a cena de dentro - onde uma multidão está sentada ao redor de Jesus, com uma atitude de discípulo. Quando é informado da presença dos seus parentes fora, Jesus olha aos que estão ao redor dele e faz uma declaração espantosa e contundente: “Aqui está minha mãe e meus irmãos!” O texto logo explica o sentido dessa afirmação: “quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe!” Na verdade, Jesus não está denegrindo a sua família, mas insistindo nas novas relações que nascem do fato de se tornar discípulo d’Ele. Parentesco não traz privilégio nenhum - o importante é ser discípulo/a e cumprir a vontade de Deus. Assim Jesus afirma que na medida em que nós nos tornamos discípulos/as, teremos a mesma dignidade que a sua mãe e parentes. Tudo se relativiza diante das exigências do Reino e do seguimento!

            Embora não seja uma questão de grande importância, talvez valham umas palavras sobre o sentido da frase “irmãos e irmãs de Jesus”. É bom lembrar que na tradição do Oriente Médio não se define a família como o pequeno núcleo de pai, mãe e filhos mas inclui parentes próximos e distantes. A versão grega do Antigo Testamento usa a palavra: “adelfos” (irmão) nos dois sentidos, restrito e amplo (Gn 29, 12 e 24, 48). Podemos dizer que na tradição cristã, existem três tipos de interpretação para esta questão. Primeiro, entende-se o termo “irmão” no sentido do uso oriental. Segundo, usando uns documentos apócrifos (nunca foram aceitos pela Igreja como canônico, isso é, inspirado por Deus) do século IV chamado “O Proto-Evangelho de Tiago” e “A História de José o Carpinteiro”, se diz que a Maria casou com um viúvo idoso, José, que já tinha seis filhos/as: Judas, Tiago, Joset, Simão, Lídia, Lísia. Assim, os “irmãos” seriam só da parte de José e não da Maria. Parece muito pouco improvável e é mais uma tentativa de “explicar” o termo “irmãos” para salvaguardar a doutrina da virgindade perpétua de Maria d que algo com base fatual. Terceiro, seguindo São Jerônimo, se diz que são primos de Jesus em primeiro grau. O importante é saber que a concepção virginal de Jesus está claramente ensinada na Bíblia e faz parte do Credo Apostólico. Mas, a questão da virgindade perpétua de Maria não é tratada nos Evangelhos, e não adianta buscar argumentos neles em favor ou contra. Essa doutrina faz parte da fé católica desde os primórdios.

            A disputa com os escribas também intriga umas pessoas quando fala do “pecado contra o Espírito Santo” que não tem perdão. Em que consiste? Segunda a nota do rodapé da Bíblia TEB, “este pecado consiste em negar-se a reconhecer o poder que atua por meio de Jesus, atribuindo a Satanás as obras que ele realiza pelo Espírito Santo. Tal recusa à conversão contraria o perdão”. Mas, as palavras fortes referentes a este pecado não devem tirar a nossa atenção de algo muito mais importante - que todos os outros pecados, por tão “pesados” que possam ter, têm perdão. Esse fato é um grande “Evangelho”, ou “Boa Notícia” e deve nos animar que para que sejamos portadores dessa mensagem de perdão e reconciliação a todos.

 

Décimo Primeiro Domingo Comum (14.06.15)

Mc 4, 26-34

“Com que coisa podemos comparar o Reino de Deus?”

O texto de hoje traz à tona dois elementos muito importantes para o estudo dos Evangelhos - “o Reino de Deus” e “as parábolas”. Antes de olhar o texto mais de perto, convém comentar algo sobre esses dois termos ou conceitos.

Existe um consenso entre os estudiosos modernos, sejam católicos ou protestantes, que existem duas palavras nos textos evangélicos que provém do próprio Jesus e que não dependem da reflexão posterior das comunidades: “Reino” e “Pai” “Abbá” em aramaico. Estamos tão acostumados de ter Jesus como “objeto” da nossa pregação que esquecemos que Ele não pregou a si mesmo, mas o “Reino de Deus” (geralmente citado em Mateus como o Reino dos Céus, para evitar o uso do nome de Deus, em uma comunidade predominantemente judeu-cristã). A vida inteira de Jesus foi dedicada ao serviço desse Reino, que Ele nunca define, pois é uma realidade dinâmica, mas que Ele descreve por comparações, usando parábolas. “Parábola” é um tipo de comparação, usando símbolos e imagens conhecidos na vida dos ouvintes, e que os leva a tirar as suas próprias conclusões (de fato, várias vezes temos a explicação de uma parábola nos evangelhos mas essa nasceu da catequese da comunidade e não teria feito parte da parábola original). O Capítulo 13 de Mateus talvez seja o melhor exemplo do uso de parábolas para clarificar a natureza do Reino - ou Reinado - de Deus.

No tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, os diversos grupos religiosos judaicos (com a exceção dos ultraconservadores e elitistas Saduceus), esperavam a chegada do Reino de Deus e achavam que poderiam apressar a sua chegada - os Fariseus através da observância da Lei, os Essênios através da pureza ritual, os Zelotas através de uma revolta armada. O texto de hoje nos adverte que não é nem possível e nem necessário tentar apressar a chegada ou o crescimento do Reino de Deus, pois ele possui uma dinâmica interna própria de crescimento. Como a semente semeada cresce independente do semeador e sem que ele saiba como, assim o Reino cresce onde plantado, pois também tem a sua própria força interna que, passo por passo, vai levá-lo à maturidade. Assim, o texto nos ensina o que Paulo ensina de uma maneira diferente aos coríntios, quando, referindo-se ao trabalho de evangelização desenvolvido por ele, Apolo e outros/as missionários/as; ele afirma “Paulo planta, Apolo rega, mas é Deus que faz crescer” (1 Cor 3, 6).

Uma das imagens que Jesus usa para caracterizar o Reino é a do grão de mostarda. Embora a semente seja minúscula, ela cresce até se tornar um arbusto frondoso. Assim Jesus quer que relembremos que é importante começar com ações pequenas e singelas, pois, pela ação do Espírito Santo, elas poderão dar frutos grandes. Esta parábola é um lembrete para que não caiamos na tentação de olhar as coisas com os olhos da sociedade dominante, que valoriza muito a prepotência, o poder, a aparência externa. A nossa vocação é plantar e regar, nunca perdendo uma oportunidade de semear o Reinado de Deus - ou seja, criar situações onde realmente reine o projeto do Pai, projeto de solidariedade e amor, partilha e justiça, começando com sementes minúsculas, para que, não através do nosso esforço, mas da graça de Deus, eventualmente cresça uma árvore frondosa que abrigará muitos. O desafio do texto é de que valorizemos o gesto pequeno, as duas moedas da viúva, a semente de mostarda, não nos preocupando com os resultados, mas, confiantes no poder transformador da semente, plantar e regar, para que Deus possa ter a colheita!

 

DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO COMUM (21.06.15)

Mc 4,35-41

“Quem é este homem?”

            Este texto está situado na primeira parte do Evangelho, onde Marcos procura demonstrar que as autoridades religiosas da época, os próprios parentes de Jesus e os discípulos d’Ele não o compreenderam, apesar de verem as suas obras e milagres (1, 19-8, 21). Toda esta primeira parte do Evangelho prepara o chão para a pergunta fundamental do Evangelho: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Por isso a história hoje relatada leva os discípulos a se perguntarem: “Quem é este homem?”

            A história do evento no mar de Galiléia retrata simbolicamente a situação da comunidade marcana, pelo ano 70, quando o Evangelho foi escrito. A comunidade está vacilando na sua fé, assolada por dúvidas e até perseguições. Diante do cansaço da caminhada, muitos se refugiaram na busca de uma religião de milagres, sem o esforço de seguir Jesus até a Cruz. Por isso, Marcos insiste que os milagres não são suficientes para conhecer Jesus, pois as autoridades, os familiares e os discípulos os presenciaram e não chegaram a entender nem a pessoa nem a proposta de Jesus.

O barco no lago, assolado pelos ventos e ondas, representa a comunidade dos discípulos, prestes a afundar-se por causa das dificuldades da caminhada. Jesus dorme no barco e parece não se preocupar com o perigo. Assim, para a comunidade marcana, parecia que Jesus não estava ligado aos seus sofrimentos e, como consequência, vacilavam na sua fé. Mas, Jesus acalmou o mar e ainda questionava a pouca fé dos Doze: “por que vocês são tão medrosos? Vocês ainda não têm fé?” (v. 3). Assim, Marcos quis mostrar aos leitores do seu tempo que Jesus estava com eles nas dificuldades e que a sua falta de fé estava causando grande parte das dificuldades que estavam enfrentando.

Hoje, em muitos lugares, a Igreja parece como a igreja marcana, ou ainda como o barco no mar. Diante das desistências, do secularismo, da diminuição da sua influência, para muitos a Igreja esta se afundando. Em lugar de assumir o doloroso seguimento de Cristo até a Cruz, muitos se refugiam em uma religiosidade de milagres, assim fugindo da penosa tarefa de construir o Reino de Deus entre nós. Até diante da pessoa e mensagem do Papa Francisco, muitos simpatizam com ele como pessoa, mas permanecem surdos aos seus apelos em favor de um seguimento autêntico do Salvador. Marcos vem corrigir esta ideologia triunfalista das suas comunidades e nos convida a aprofundar a nossa fé, a clarear para nós mesmos e para o mundo “quem é este homem?”, e a segui-Lo no dia a dia. Pois, Jesus não está alheio às nossas dificuldades! Pelo contrário, Ele está no meio de nós. Só que não nos livra da tarefa de nos engajarmos na luta pelo Reino, mesmo que as ondas e os ventos estejam contrários. Ter fé n’Ele não é somente acreditar que Ele exista e seja Filho de Deus, mas tomar a nossa cruz e segui-Lo, na certeza que Ele não nos abandonará! Ressoa para nós hoje a pergunta de dois mil anos atrás: “Por que são tão medrosos? Ainda não têm fé?”

 

FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO (28.06.15)

Mt 16, 13-19

“Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”

Hoje a Igreja celebra a festa de dois grandes apóstolos, Pedro e Paulo, este grande evangelizador dos pagãos ou gentios, e aquele do seu próprio povo. Como Evangelho do dia, escolheu-se a história do caminho de Cesareia de Felipe. O relato mais antigo está no Evangelho de Marcos, Cap. 8 vv 27-38, o qual se tornou o pivô de todo o Evangelho. A estrutura de Mateus é diferente mas o relato tem a mesma finalidade, ou seja, ajudar os ouvintes e leitores a clarificar quem é Jesus e o que significa ser discípulo ou discípula d’Ele.

A pedagogia do relato é interessante. Primeiro, Jesus faz uma pergunta bastante inócua: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?” Assim, vem muitas respostas, pois responder essa pergunta não compromete por ser o “diz que”. Mas, a segunda pergunta traz a facada: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Agora não vêm muitas respostas, pois quem responde em nome pessoal, e não dos outros, se compromete! Somente Pedro se arrisca e proclama a verdade sobre Jesus: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Aparentemente Pedro acertou e realmente, em Mateus, Jesus confirma a verdade do que proclamou! Afirmou que foi através de uma revelação do Pai que Pedro fez a sua profissão de fé. Mas, para que entendamos bem o trecho, é necessário que continuemos a leitura pelo menos até v. 25. Pois, o assunto é mais complicado do que possa parecer.

Pois, após afirmar que Pedro tinha falado a verdade, Jesus logo explica o que significa ser o Messias (ou, em grego, o Cristo. O termo significa “Ungido”). Não era ser glorioso, triunfante e poderoso conforme os critérios deste mundo. Muito pelo contrário, era ser fiel à sua vocação como Servo de Javé, era ser preso, torturado e assassinado, era dar a vida em favor de muitos. Jesus confirmou que Ele era o Messias, mas não da maneira que Pedro esperava e queria. Ele, conforme as expectativas do povo do seu tempo, queria um Messias forte e dominador, não um que pudesse ir, e levar os seus seguidores também, até a Cruz! Por isso, Pedro reluta com Jesus, pedindo que nada disso acontecesse. Como recompensa, ganha uma das frases mais duras da Bíblia: “Afasta-se de mim, Satanás, você é uma pedra de tropeço para mim, pois não pensas as coisas de Deus, mas dos homens!” (v. 23). Pedro, cuja proclamação de fé mereceu ser chamada a pedra fundamental da Igreja (v. 18), é agora chamado de Satanás - o Tentador por excelência - e “pedra de tropeço” para Jesus! Pedro usava o título certo, mas tinha a compreensão errada! Usando os nossos termos de hoje, de uma forma um tanto anacrônica, podemos dizer que ele tinha ortodoxia, mas não ortopraxis!

Assim, Jesus usa o equívoco de Pedro para explicar o que significa ser seguidor d’Ele: “Se alguém quer me seguir, renuncie a se mesmo, tome a sua cruz, e siga-me” (v. 24). Ter fé em Jesus não é em primeiro lugar um exercício intelectual ou teológico, mas uma prática; o seguimento d’Ele na construção do seu projeto, até às últimas consequências.

Hoje, enquanto celebramos os nossos dois grandes missionários, a pergunta de Jesus ressoa forte - a segunda pergunta. Para nós, quem é Jesus? Não para o catecismo, não para o papa ou o bispo, mas para cada de nós, pessoalmente? No fundo, a resposta se dá, não com palavras, mas pela maneira em que vivemos e nos comprometemos com o projeto de Jesus - Ele que veio para que todos tivessem a vida e a vida plenamente! (Jo 10, 10). Cuidemos para que não caiamos na tentação do equívoco de Pedro, a de usar termos corretos, mas com a compreensão errada!

Hoje também se torna Tum dia especial para que rezemos pelo Papa Francisco. Peçamos que Deus lhe dê saúde, paz e força para conduzir a Igreja no caminho certo, como vem fazendo desde a sua eleição, apesar de fortes ventos contrários, dentro e fora da Igreja. Que ele continue a “confirmar os seus irmãos/irmãs na fé!”

Tomaz Hughes SVD

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