Mt 10, 26 – 33.
“Não tenham medo!”.
    “Não tenham medo!” Essa orientação de Jesus ressoa três vezes neste curto trecho!  Este tipo de conselho indica que o contrário era realidade na comunidade para a qual o evangelho se dirigia!  Como somente se toma remédio quando se tem uma doença, também somente se enfatiza a mesma coisa com tanta ênfase quando é para combater um perigo na vida de uma comunidade.Então parece que medo era um problema para os membros das comunidades mateanas.  Medo de que?  O trecho que antecede o de hoje deixa bem claro. Nos versículos 16-25 Jesus fala das perseguições que os seus discípulos terão que enfrentar.

  Inclui perseguição por parte do poder civil (“entregarão vocês aos tribunais”), perseguição pela a autoridade religiosa judaica (“acoitarão vocês nas sinagogas deles”) e até perseguição e rejeição pelos membros das suas próprias famílias (“irmão entregará à morte o próprio irmão; o pai entregará os filhos; os filhos se levantarão contra os pais e os matarão”).  Quando Mateus escreve essas palavras, este cenário já era conhecido no meio das suas comunidades. Pois enquanto nos primeiros anos da Igreja os cristãos eram tolerados dentro da comunidade dos judeus como uma seita não muito diferente das outras seitas judaicas, e eram, portanto, tolerados pelo Império Romano, que dava ao judaísmo o status de “religião lícita”, nos anos depois de 85 dC tudo mudou.  Um grupo de rabinos fariseus, liderados pelos mestres Yohannan bem Zakkai e Gamaliel II tentava reerguer o judaísmo, sem Templo, sem sacerdócio, sem Jerusalém, ao redor da estrita observância da Lei. Era urgente reagrupar os judeus depois da destruição de Jerusalém, e dar-lhes uma nova identidade.  Para isso aparecia-lhes necessário insistir na Lei, na sua interpretação farisaica.  Assim, o “desvio” cristão parecia algo que pudesse minar este projeto, e os judeu-cristãos começaram a ser expulsos das sinagogas. Isso implicava ser rejeitados na sua identidade religiosa, familiar e cultural e vistos como traidores pela sua comunidade tradicional.  Famílias se rachavam e os judeu-cristãos eram denunciados pelos próprios familiares.  Expulsos das sinagogas, não mais pertenciam a uma religião lícita e corriam o risco de serem perseguidos também pelo poder imperial.  Como então não entrar em crise, ter medo?
    Mateus enfrenta o problema dando-lhes uma mística.  Se assim aconteceu com o Mestre, como não acontecerá com o discípulo?  A perseguição não era sinal de fracasso, mas de fidelidade no seguimento de Jesus! Por isso, não deveriam ter medo, pois o Pai jamais iria abandoná-los.  O grande perigo era deixar que o medo os paralisasse, ou os levasse a mudar de opção de vida, escolhendo a aprovação humana em lugar da fidelidade do discipulado.
    Hoje, em geral não somos perseguidos por causa da nossa religião, pelo menos enquanto limitamos a religião à esfera privada. (Na verdade, há mais cristãos perseguidos no mundo hoje do que nos tempos do Império Romano – outra realidade do que a do Brasil).  O mundo nosso até aprova a religião como opção particular, uma vez que não tenha conseqüências sociais e econômicas. Mas persegue a religião que ousa tirar as conclusões práticas do seguimento de Jesus, que veio “para que todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Temos presenciado nisso nas ameaças sofridas por lideres nossos, bispos, padres relifgiosos/as e leigos/as, especialmente no Norte do país. O mundo globalizado do neoliberalismo excludente, que prega o “evangelho” da competitividade e o paraíso do consumo, rejeita a religião que prega a justiça, a partilha, o cuidado dos mais fracos e indefesos, a solidariedade.  Religião dentro do templo, sim, mas aí de quem procura concretiza-la na luta por terra, teto, salário, direitos humanos etc.
    Por isso devemos levar a sério o que Jesus nos adverte quando diz “não tenham medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma”.  Devemos temer, sim, a tentação de nos conformarmos com as exigências duma sociedade egoísta e idolátrica, que ameaça matar a alma das Igrejas, deixando-as com o seu “corpo” - templos, festas, honras, prédios etc,-  mas matando a sua “alma” - a prática da opção evangélica pelos oprimidos. O Brasil também tem os seus mártires – e a lista é comprida – que deram a sua vida nas perseguições lançadas pelas ditaduras, latifundiários, e elites.  É sinal duma igreja viva.  Mas não é fácil manter-se firme diante das seduções da sociedade consumista, aliadas às ameaças dos detentores do poder.  Assim soa atual a última advertência do trecho, “quem me renegar diante os homens, eu também renegarei diante do meu Pai”.  Mas também deve nos animar para a luta e a coerência a frase anterior, “quem der testemunho de mim diante dos homens, também eu darei testemunho dele diante do meu Pai”.  Tanto o testemunho como a renegação normalmente não se faz com a boca, mas com as opções concretas em favor dos oprimidos ou dos opressores, no nível individual e eclesial.  Lembremo-nos do canto que tantas vezes cantávamos nas Missas e encontros: “Não temais os que tudo deturpam pra não ver a justiça vencer; tende medo somente do medo de quem mente pra sobreviver”.