Mt 4, 1-11
“Não só de pão vive o homem”
    Os três Sinóticos (Mt, Mc e Lc) contam a história das tentações de Jesus logo depois do Batismo - Marcos de uma forma resumida, Mateus e Lucas de uma maneira mais elaborada. Devemos lembrar que estes relatos procuram expressar uma experiência interior de Jesus, e não devem ser interpretados ao pé da letra, de uma maneira fundamentalista.

Ligando as tentações ao batismo de Jesus, os evangelistas mostram que a sua experiência é como a nossa própria experiência - nós também temos compromisso com o projeto de Deus, individual e comunitariamente; mas entre o nosso compromisso e a sua concretização de uma maneira coerente com a vida de discípulos/missionários/as de Jesus, existem muitas tentações e opções que exigem discernimento!
    O texto diz que Jesus era “conduzido pelo Espírito ao do deserto” (v. 1). O Espírito não conduz Jesus à tentação, mas O acompanha nas tentações. E como o Espírito Santo não O abandonou no momento de crise, mas lhe dava força, tampouco vai nos abandonar nos momentos de crise e discernimento.  Isso pode ser importante relembrar, pois frequentemente temos uma facilidade em sentir a presença do Espírito de Deus quando tudo vai bem conosco, e uma inclinação para sentirmos até abandonados por Deus quando o caminho e difícil.  Mas o Espírito está sempre conosco, não só nos “prados e campinas verdejantes” mas também nos momentos de “deserto”.
    O início das tentações se dá no deserto. Mateus quer evocar a experiência de Israel, pois para ele Jesus era o Novo Moisés, e a Igreja o Novo Povo de Deus; e, podemos lembrar que no deserto, Moisés e o povo foram tentados e sucumbiram – mas, Jesus é tentado e vence!
    Olhando bem as tentações, podemos encontrar nelas três grandes tentações da época pós-moderna, também para a vida cristã: as do “Ter”, do “Poder” e do “Prazer”. As tentações de Jesus não são para coisas que são más em si, mas que causariam desvios do plano do Pai. Não é diferente com a vida cristã hoje - raramente somos tentados a assumir algo mau em si; mas, sim, a fazer opções para coisas boas, mas que seriam incoerentes com o projeto de Deus para nós! A tentação vem de forma sutil, disfarçada - vale notar que nas três tentações o diabo não nega a identidade e missão de Jesus, mas a confirma “Se és Filho de Deus”. Também, para nós, a tentação pode se apresentar como algo que não nega a nossa identidade cristã, mas que é condizente com ele, enquanto na verdade não é. Por isso, a necessidade da “vigilância”, para não cairmos em tentação, uma advertência constante dos Evangelhos. Quaresma pode ser tempo privilegiado deste discernimento individual e comunitário.
    Primeiro Jesus era tentado a mandar que pedras se tornassem pães. Jesus veio para doar-se como o Servo de Javé - mas logo, no momento do primeiro sacrifício por causa da sua opção, ele é tentado a esquivar-se! É a tentação do “prazer” hoje - entre as mais comuns, em um mundo que prega a satisfação imediata dos desejos, uma sociedade que cria necessidades falsas através de sofisticadas campanhas de propaganda. Estamos em uma sociedade de individualismo, onde a regra dominante é “se deseja, faça!” Uma sociedade onde o sacrifício, a doação e a solidariedade são considerados como a ladainha dos perdedores! As consequências dessa visão são bem exploradas como temas das Campanhas da Fraternidade – desde a destruição do Planeta e da vida que existe nele ao tráfico de pessoas humanas para exploração sexual. Jesus não cai na tentação - a resposta dele é contundente: “Não só de pão vive o homem” (v. 4). Jesus enfrenta essa tentação - e as outras - com citações tiradas de Dt 6-8, que versam sobre a primazia da Palavra de Deus como o alimento do seu povo na caminhada. Jesus aqui dá o verdadeiro sentido do seu jejum - Deus é o único sustento da verdadeira vida. Ele, possuído pelo Espírito de Deus, confia no seu Deus para sustentá-lo. A obediência de Jesus como Filho e Servo (cf. Hb 5, 7-8), simbolizada pelo jejum, é agora verbalizada. Jesus confia que o seu Pai vai sustentá-lo em todos os seus sofrimentos e tribulações, provenientes de uma vida coerente com a sua vocação. Uma bela lição para nós, nos momentos difíceis da nossa caminhada cristã!
A pessoa humana, para Jesus, vive certamente de pão - mas não só! Jesus não é sádico nem masoquista, contra o necessário para uma vida digna. Salienta muito bem que não é somente a posse de bens (simbolizados pelos pães) que traz a felicidade, mas a busca de valores mais profundos, como a fidelidade à vontade de Deus, a justiça, a partilha, a doação, a solidariedade com os sofredores. Não faz nenhum contraste falso entre bens materiais e espirituais - precisamos de ambos para que tenhamos a vida plena! Com esta frase, Jesus desautoriza tanto os que buscam a sua felicidade e a solução dos problemas do mundo na simples satisfação das necessidades materiais, como os que dispensam a luta pelo pão de cada dia para todos - duas tendências não ausentes entre nós cristãos.
    A segunda tentação é de confiar no poder - fazer milagre diante de milhares, para demonstrar o seu poder. A tentação do poder é tremendamente insídia em nós, na sociedade e nas Igrejas. Há mais de um século, um estadista e historiador católico inglês, Lord Acton, advertiu que “todo o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente!” Jesus veio como Servo, assumiu a missão do Servo de Javé, mas é tentado a confiar mais no poder, no extraordinário, e não no Deus Libertador e nos pobres e humildes. Quantas vezes a Igreja confiava mais no poder secular do que na fragilidade da Cruz, para “evangelizar”! Quanta aliança entre a cruz e a espada - a América Latina que o diga! E continua corrente esta tentação - de confiar mais nas concentrações nos estádios cheios, com “milagres” e “prodígios”, do que nos grupos pequenos e humildes das comunidades cristãs, dirigidos por pessoas simples, sem pretensões, espalhados pelo Brasil afora! Somos todos capazes de cair nesta tentação - não a de ter o poder para servir, mas de confiar no poder deste mundo, aparentemente mais forte e eficaz do que a fraqueza de Deus, assim contradizendo o que Paulo afirmava com força “A fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1, 25) e ainda: “Deus escolheu o que é fraqueza no mundo, para confundir o que é forte” (1Cor 1, 27). Jesus, que veio para servir e não para ser servido, que veio como o Servo de Javé e não como dominador, teve que clarificar a sua vocação e despachar o diabo, o tentador, com a frase “Não tente o Senhor seu Deus!” (v. 7).  Não é sem motivo que o Papa Francisco critica essa tendência especialmente entre candidatos para o sacerdócio e vida religiosa.  Como disse “a Vida Religiosa não é lugar para carreiristas nem alpinistas sociais!”
A terceira tentação pode ser vista como a do “ter”. Não que o dinheiro seja algo ruim - sem ele não se vive! Torna-se um mal quando chega a ser um ídolo - a fonte de nossa auto-suficiência! É ruim quando se fundamenta a vida sobre ele. Jesus não é tentado a ser um ricaço - mas é tentado no sentido de fugir da sua vocação de ser o messias dos pobres, tão esperado pelos “anawim”, os pobres de Javé, e profetizado por Segundo-Isaías, Zacarias e Sofonias. É tentado a acreditar mais no poder da riqueza do que na pobreza dos seus futuros discípulos de Galiléia.
 De novo, algo muito semelhante com a nossa situação atual. Nós temos que viver o nosso compromisso no mundo pós-moderno da globalização do mercado, do neoliberalismo, do “evangelho” do mercado livre. Diariamente, os meios da comunicação de massa trazem para dentro das nossas casas - inclusive casas religiosas - a mensagem de que é necessário “ter mais”, e não importa “ser mais!” Como sempre, a tentação vem de forma atraente - até a Igreja pode cair na tentação de achar que a simples posse de bens, que poderão ser usados em favor da missão, garantirá uma ação mais evangélica. Somos tentados a não acreditar na força dos pobres e simples, de não seguir as pegadas do carpinteiro de Nazaré. Quantas vezes nós somos tentados a confiar no poderio do dinheiro, como se a compra de instrumentos e aparelhos cada vez mais sofisticados garantisse a evangelização. É certo que devemos utilizar o que a ciência moderna nos providencia, mas, sem confiar nisso como o fundamento da nossa missão. Mais uma vez o Papa Francisco faz ressoar a sua voz profética quando diz “Desejo uma Igreja pobre para os pobres”(Evangelii Gaudium 198). Jesus enfrentou essa mesma tentação - Ele que veio para ser pobre com os pobres, para manifestar o Deus que opta preferencialmente por eles, é tentado a confiar nas riquezas. Para o diabo - e para o nosso mundo que idolatra o bem-estar material e o lucro, mesmo às custas da justiça social - Jesus afirma: “Você adorará o Senhor seu Deus, e somente a Ele servirá” (v. 10)
    Realmente, podemos nos encontrar nas tentações de Jesus. O “ter”, o “poder” e o “prazer” são coisas boas, quando utilizados conforme a vontade de Deus, mas altamente destrutivas quando tomam o lugar de Deus em nossa vida! Jesus teve que enfrentar o que nós hoje enfrentamos - o “diabo” que está dentro de nós, o tentador que procura nos desviar da nossa vocação de discípulos. O texto nos coloca diante da orientação básica para quem quer ser fiel à sua vocação cristã: “Você adorará o Senhor seu Deus, e somente a Ele servirá” (v. 10)
    O texto nos ensina que Jesus, Filho e Servo, vencerá a hostilidade à sua missão pela sua fé obediente, e libertará as pessoas dominadas pela força do mal. Mas, a tentação não era de um momento só - voltará mais vezes na vida de Jesus, como na nossa. Aparecerá de novo no caminho de Cesaréia de Filipe, no Horto das Oliveiras e especialmente na Paixão - a suprema investida do diabo! Diante das várias opções disponíveis, diante dos diversos modelos de messianismo, Jesus teve que discernir a vontade do Pai. É o desafio da vida cristã hoje.
Tomaz Hughes SVD
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